sexta-feira, 18 de abril de 2014

PAISAGEM NATURAL DA MENTE




DA ABJEÇÃO
JACQUES RIVETTE  CAHIERS DU CINÉMA  Nº 120  JULHO 1961

O mínimo que se pode dizer, é que é difícil, quando se organiza um filme sobre um tal assunto (os campos de concentração), não se colocar certas questões prévias; mas tudo se passa como se, por incoerência, estupidez ou covardia, Pontecorvo tivesse resolutamente negligenciado colocá-las.
Por exemplo, a questão do realismo: por várias razões, fáceis de compreender, o realismo absoluto, ou o que pode valer por ele no cinema, é aqui impossível; toda tentativa nesta direção é inacabada (“logo imoral”), toda tentativa de reconstituição ou de maquiagem, derrisória e grotesca, toda aproximação tradicional do “espetáculo” é do domínio do voyeurismo e da pornografia. O diretor tem então que tornar insosso, para que o que ele ousa apresentar como a “realidade” seja fisicamente suportável para o espectador, que em seguida somente poderá concluir, talvez inconscientemente, que, claro, foi penoso, esses alemães selvagens, mas não intolerável no fim das contas, e que se comportando bem, com um pouco de astúcia ou de paciência, era possível se salvar. Ao mesmo tempo, cada um se habitua perfidamente ao horror, que entra aos poucos nos costumes, e logo fará parte da paisagem natural do homem moderno. Quem poderá, da próxima vez, espantar-se ou indignar-se com o que terá cessado de ser chocante?
É aí que se compreende que a força de Noite e Neblina (Nuit et Brouillard) vinha menos dos documentos do que da montagem, da ciência com a qual os fatos brutos, reais, ora!, eram oferecidos ao olhar, num movimento que é justamente aquele da consciência lúcida e quase impessoal, que não pode aceitar compreender e admitir o fenômeno. Pudemos ver alhures outros documentos mais atrozes que os selecionados por Resnais: mas a que o homem não pode se habituar? Ora, não se habitua a Noite e Neblina. É que o cineasta julga aquilo que ele mostra, e é julgado por sua maneira de julgar.
Outra coisa: citou-se muito, à esquerda e à direita, e no mais das vezes bastante hipocritamente, uma frase de Moullet: “a moral é uma questão de travellings (temos a versão de Godard: “os travellings são questão de moral”). Quis-se ver aí o cúmulo do formalismo, ao passo que se poderia antes criticar o excesso “terrorista”, para retomar a terminologia paulhaniana. Veja contudo, em Kapo, o plano no qual Riva se suicida, jogando-se sobre o arame farpado eletrificado. O homem que decide, neste momento, fazer um travellingde aproximação para reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado em inscrever a mão levantada exatamente em um ângulo de seu enquadramento final, este homem não tem direito senão ao mais profundo desprezo. Há alguns meses temos sido importunados  com os falsos problemas da forma e do conteúdo, do realismo e da fantasia, do roteiro e da “mise-en-scène”, do ator livre ou dominado, e de outras tolices; digamos que todos os sujeitos nasçam livres e iguais em direito; o que conta é o tom, ou o acento, a nuance, como se queira chamar – ou seja, o ponto de vista de um homem, o autor, mal necessário, e a atitude que este homem toma em relação ao que ele filma, e pois em relação ao mundo e a todas as coisas: o que pode se exprimir pela escolha das situações, a construção da intriga, os diálogos, o jogo dos atores, ou a pura e simples técnica, “indiferentemente mas tanto quanto”[1]. Há coisas que só podem ser abordadas no temor e no terror; a morte é uma delas, sem dúvida. E como, no momento de filmar uma coisa tão misteriosa, não se sentir um impostor? Melhor seria em todo caso se colocar a questão, e incluir esta interrogação, no que se filma; mas a dúvida é justo aquilo de que Pontecorvo e seus semelhantes são desprovidos.
Fazer um filme é pois mostrar certas coisas, é ao mesmo tempo, e pela mesma operação, mostrá-las de um certo viés; sendo estes dois atos rigorosamente indissociáveis. Do mesmo modo que não pode haver um absoluto da mise-en-scène, pois não há mise-en-scène no absoluto, do mesmo modo o cinema jamais será uma “linguagem”: as relações do signo ao significado não estão em curso aqui, e não conduzem senão a tão tristes heresias como a pequena Zazie. Toda abordagem do fato cinematográfico que se propõe a substituir a síntese pela adição, a unidade pela análise, nos envia de imediato a uma retórica de imagens que não tem mais à ver com o fato cinematográfico como o desenho industrial com o fato pictórico. Por que esta retórica continua tão cara àqueles que se auto-intitulam “críticos de esquerda”? – talvez, no fim das contas, eles sejam antes de tudo irredutíveis professores. Mas se nós sempre detestamos, por exemplo, Pudovkin, De Sica, Wyler, Lizzani, e os antigos combatentes do Idhec, é porque o resultado lógico deste formalismo chama-se Pontecorvo. Pensem o que pensem os jornalistas express, a história do cinema não entra em revolução toda semana. A mecânica de um Losey, a experimentação nova-iorquina não a perturba do mesmo modo que as ondas da greve não perturbam a paz das profundezas. Por que? É que alguns só se colocam problemas formais e outros os resolvem todos antecipadamente não se colocando problema algum. Mas o que dizem antes aqueles que fazem realmente a história, a quem chamamos também “homens de arte”? Resnais confessará que se tal lançamento semanal interessa o espectador que há nele, é contudo diante de Antonioni que ele tem o sentimento de ser somente um amador, do mesmo modo que Truffaut falará provavelmente de Renoir, Godard de Rossellini, Demy de Visconti. E como Cézanne, contra todos os jornalistas e cronistas, foi aos poucos imposto pelos pintores, assim os cineastas impõem à história Murnau ou Mizoguchi.




[1] Rivette faz uso de um verso de Mallarmé presente no poema Um lance de dados ( Un coup de dés): “indifférement mais autant”.




                                           Je vous salue, Sarajevo - Jean-Luc Godard (1993)



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