sexta-feira, 20 de março de 2015

SESSÃO - SALÒ OU OS 120 DIAS DE SODOMA - 1975 (PIER PAOLO PASOLINI)




Trata-se de um encontro ao mesmo tempo calculado e aleatório entre o corpo e a câmera, descobrindo alguma coisa, construindo um ângulo, um volume, uma curva, seguindo um traço, uma linha, eventualmente uma ruga. E depois, bruscamente, o corpo se des-organiza, torna-se uma paisagem, uma caravana, uma tempestade, uma montanha de areia, etc. É o contrário do sadismo, que recortava a unidade. O que faz a câmera de Schroeter[1], é não detalhar o corpo para o desejo, é construir o corpo como uma massa e  fazer nascer dele imagens que são imagens do prazer e para o prazer. No ponto de encontro sempre imprevisto da câmera (e de seu prazer) com o corpo (e as pulsações de seu prazer) nascem essas imagens, prazeres de múltiplas entradas.

O sadismo era anatomicamente comportado e, se ele se enfurecia, era no interior de um manual de anatomia bastante razoável. Não há loucura orgânica em Sade. Querer retranscrever Sade, esta anatomia meticulosa, em imagens precisas, não funciona. Ou Sade desaparece, ou se faz um cinema de papai.




 É um erro histórico total. O nazismo não foi inventado pelos grandes loucos eróticos do século XX, mas pelos mais sinistros, entediantes, nojentos pequeno-burgueses que se possa imaginar. Himmler era apenas um agrônomo, e ele havia esposado uma enfermeira. É preciso que se compreenda que os campos de concentração nasceram da imaginação conjunta de uma enfermeira de hospital e de um criador de galinhas. Hospital mais viveiro: eis o fantasma que havia por trás dos campos de concentração. Milhões de pessoas foram mortas, então não digo isso para diminuir a crítica a ser feita sobre esse empreendimento, mas justamente para desencantá-lo de todos os valores eróticos que  tentaram sobretaxá-lo.

Os nazistas eram empregadas domésticas no mau sentido do termo. Eles trabalhavam com panos de chão e vassouras, queriam purgar a sociedade de tudo que consideravam ser sânies, poeira, lixo: sifilíticos, homossexuais, judeus, sangues impuros, negros, loucos. É o sonho infecto pequeno-burguês da limpeza radical que sustentava o sonho nazista.

 Eros ausente.

Dito isto, não é impossível que, de maneira local, tenha havido, no interior dessa estrutura, relações eróticas que ligavam, no afrontamento, o corpo a corpo entre o carrasco e o torturado. Mas foi acidental.

O problema que se coloca é saber por que hoje nós imaginamos ter acesso a certos fantasmas eróticos através do nazismo. Por que essas botas, esses capacetes, essas águias, pelas quais nos fascinamos constantemente, e sobretudo nos Estados Unidos? Não seria a incapacidade onde nos encontramos de viver realmente o grande encantamento do corpo desorganizado, que nos faz nos deslocarmos para um sadismo meticuloso, disciplinar, anatômico. O único vocabulário que possuímos para retranscrever esse grande prazer do corpo em explosão seria essa triste fábula de um recente apocalipse político? Não poder pensar a intensidade do presente senão como o fim do mundo em um campo de concentração? Veja como nosso tesouro de imagens é pobre! E como é urgente fabricar um novo ao invés de chorar com resmungos de "alienação" e de vilipendiar o "espetáculo".





[1] Werner Schroeter, cineasta alemão (1945-2010)


      Michel Foucault - Sade, sargent du sexe (Dits et écrits I) - Gallimard




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